sexta-feira, janeiro 26, 2007

Delcy Doná


Meu amigo Delcy Doná, quem diria!

Foram precisos 40 e tantos anos para voltar e reencontrar! E a nos falar como antigamente - tamanhos desvios e outros caminhos cada qual tomou nos destinos pela vida.

Pois o Delcy Doná foi meu “arqui-rival” na arte de dirigir o F-600 aquele imenso caminhão (Ford - 1958) amarelo. O qual tinha freio a "bafo". Era pisar no freio e ouvir o "chiadinho" do ar pelo “bafo”. E mesmo se precisar, a gente dava duas, três bombadas só para ouvir... E depois também gostávamos de escutar a carroceria ranger, gemer e estalar quando carregada. No mais das vezes, juntado a esse prazer, carregar a ruidosa "zalunera" e torcidas por aí a jogar futebol por esse mundão.

No mais, vamos reconhecer. Aquele velho caminhão (ultramoderno na época) marcou o início dos anos em Inconfidentes muitas vezes como a única “condução” disponível – pois as vezes a jardineira do Irineu volta e meia “estercava”. Pois sempre a vencer atoleiros no tempo das águas, buraqueiras, costelas de vacas e, anunciar chegada pelo levante de nuvens de poeira no tempo das secas, rodou os caminhos do bom Deus a deixar para trás chuvas e trovões por onde passava veloz, soberano... e no retrovisor ficavam os restos dos carros: perdidos na poeira ou atolados na lama.

O Delcy era bom motorista. E por isso, nesse jogo metalinguístico da eterna juventude transviada ou não, empinava-se nariz - tanto em Copacabana e Ipanema como no Meyer ou em Inconfidentes – para não esquecer o Sapopemba. Mas ele me respeitava como mecânico, isso eu sentia. Aí, eu empinava o nariz. E aí ele sentia. Por vezes ele apanhava à-toa para fazer motor de carro velho “pegar(manivela era equipamento “normal”). Principalmente, sei, o Delcy detestava o Allis Chalmers... um velho trator de roda de ferro e bitola estreita na frente (aliás perigoso por esse motivo: pois ao encontrar o mesmo obstáculo, as duas rodas muito juntas tomavam a direção e davam um golpe no volante; se o polegar não estivesse fora do "guidon"...). Mas nesse dia, o Delcy já estava há um tempão dando manivela... Mas aí... cheguei perto... foi só "arrumar" o condensador. Pois taí: eu juro que não foi maldade minha, pois eu não tinha ainda terminado o distribuidor - tinha deixado para o dia seguinte... E o Delcy cercado pela platéia bem humorada pelo aparente “vexame técnico”, não poderia adivinhar pois aparentemente por fora tudo estava “montado” - junto ao magneto. Mas... faltava colocar o condensador... pelo lado de fora. Pois naquele dia ninguém saiu pra arar o milharal do bom Deus! E agastados, chovemos raios e trovões entre mensagens ocultas pelos afagos da mente.

Mas eu acho que isso ficou atravessado na garganta do Delcy por um bom tempo, coisa que depois se manifestava na metalinguagem da disputa pela "posse" do portentoso caminhão F-600 amarelo alaranjado. Pois um dia com esse instrumento ele se vingou. Literalmente, comi o pó lembrado até hoje - para dizer que ficou bem “vingado”. Pois de pó e poeira foi o quanto para mim bastou para o resto da vida.
Pois um dia, meu pai ia viajar para o Rio de Janeiro. E ia na velha perua da escola, uma estranha arquitetura de madeira com carroceria construída em cima de um chassis de caminhonete (Chevrolet – 1948) a mais lembrar diligências do “velho oeste”.. E isso, diga-se de passagem, até antes dessa caminhonete ser reformada - depois de tanto andar remendada com esparadrapo e fita isolante nas mangueiras do radiador a ferver (nunca paravam de pingar e, nos lugares onde a hélice de vez em quando achava de raspar...). Mas, ainda, antes de chegar a esse estado intentava essa viagem. Porém, pouco antes de chegar em Pouso Alegre, a perua "estercou" de vez. Foi a “viagem do sapo”, como se dizia.

Dessa vez, os roncos na caixa de câmbio foram aumentado... até que roncou de vez e fim. Claro, em carro velho a gente sempre andava prevenido. Tinha ferramenta e remédio pra tudo... Mas pra câmbio estourado não deu. Ali plantou. Logo voltados de carona, retornados à base em Inconfidentes, fomos buscar a perua então abandonada, largada à margem, embora cuidadosamente com vidros fechados para "dar moral" em carro chapa branca. Pois viemos busca-la com o caminhão F-600. Dirigido, claro, pelo colega Delcy.
Aí, voltada para Inconfidentes, corda amarrada no pára-choque, tive de engolir o poeirão da estrada de terra que o bom Deus caprichava - quando queria enfeitar os céus com nuvens de poeira. Pó fino, nuvem contínua... E para desgraça total, nem o limpador de pára-brisa da perua funcionava. Pois naquela época os limpadores de pára-brisa ao invés de serem elétricos (olha só que luxo de dar inveja! isso havia no F-600!), funcionavam com o "vácuo" do carburador a aspirar uma pequena "bomba" em movimentos alternados.... (detalhe: só funcionva se o motor estivesse ligado. O maior poder de aspiração eram nas desacelerações pelas descidas! Nas subidas, com o motor forçado, até paravam...). Logo, para mais perfeita vingança do Delcy, o pára-brisa da perua a quem me tocou "dirigir" (rebocada só com a corda e sem nenhum "cambão"), era uma cascata de poeira e escorrer. Era a paisagem amarela do mundo circundante que restava enxergar, fora o restante da parte interna do veículo com vidros fechados para pelo menos manter a poeira interna em menor grau de circulação alada a recobrir sobrancelhas.

Embora naquela época nem eu e, decerto, nem o Delcy tivéssemos muita consciência da metalinguagem da eterna juventude então empregada, ao chegar... tudo para mim se aclarou depois de passados esses 45 anos! E as poeiras foram retiradas para fora do entorno do passado. Pois naquele momento, devidamente resgatada a perua, restava o sucesso a comemorar depois dessa façanha semi heróica entre vinganças históricas e “guerras de poder” juvenil oculto: Pois aí entendi: troquei, sim, foi um condensador faltante num velho Allis Clalmers, por toneladas renovadas de poeira proporcionadas por um modernoso F-600 competentemente aplicadas pelo Delcy. Como se para “desempinar” nariz indevidamente empinado, coubesse juntar no poeiral do trajeto escolhido as maiores jazidas desse precioso mineral solto por onde mais camadas de pó houvesse. E eu, humilhado, restava seguir o rumo sua ditadura ouvida do cano de descarga a marcar a impiedade do castigo, misturada aos barulhos aleatórios das latarias identificados nessa pilotagem (vôo cego) de quase uma hora. Tudo, abastecido de poeira espessa, bem servida - onde método para saber se iria ou não entrar em traseira de caminhão, seria "manter" a corda esticada – para ter certeza de que tudo estaria “bem”. Pois foi verdadeira guerra de poder marcada pela potência aplicada pelos pés de cada um em cada pedal: freio... o meu. Acelerador... o Delcy. Verdadeira disputa poder (mecânica) aplicada entre vivências na oficina mecânica da Escola Agrícola onde reinava o todo poderoso Chicão - chefe da oficina - sempre a dizer que "um gambá cheira o outro de "longe" e, com ele, tudo teria de ser em cima do "isquema", claro, naqueles idos tecnológicos de 1960 onde se lixava ponta de biela para apertar "motor rajando".
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Tenho certeza: o Delcy , na potência folgada e disparatosa do F-600 e sem ver nada no retrovisor senão a própria nuvem de poeira atrás da qual sumíamos, esquecia que rebocava uma velha "patinete" a quase andar empurrada, desconjuntada nas juntas e a bater portas e pára-lamas a cada solavanco (cujo freio tinha de dar duas ou tres bombadas para começar a pegar, cada vez que largasse). Ao fim de tudo, o Delcy, não sei se apiedado pela falta do "revesamento" que eu em vão esperava acontecer em Borda da Mata, ao descer da boléia do caminhão depois de faze-lo "esguichar" três vezes o ruído do seu aparatoso freio à "bafo", bater a porta com olhar e sorriso irônico - comentou: "hehehe... senti que voce freiava"... E eu, a contabilizar o acréscimo de Borda da Mata também a escorrer em torrentes de poeira respondi: "pô... e você acelerava, meu!"


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E naquele tempo, Inconfidentes não tinha calçamento. Só para ter uma idéia, a depender da época, até cachorro ao atravessar a rua levantava poeira. Quanto mais o F-600 - mesmo quando queria fazer o favor de passar devagar. Tempos depois foi o Delcy quem me levou à Ouro Fino no próprio F-600 para embarcar para Campinas onde permaneci a percorrer outros caminhos há 45 anos atrás. Mas aí, dei o troco: ao subir no requestado caminhão dos tempos idos, antes de soltar foguete pela vitória final, tirei o sapato... bati o pó. E o deixei, devolvido pro Delcy: era o restinho do que ainda havia sobrado dessa “tertúlia” poeirenta!

Hoje Inconfidentes tem calçamento. Está urbanizado, enfeitado, árvores e canteiro.

Mas são os mesmos caminhos por onde já trilhamos. E para mim é um prazer cruzar e rever esse velho amigo, hoje funcionário da prefeitura, aposentado, sempre visto entre o Bar do Maurão e o Posto Central. Ou seja, pelas adjacências da "oficina mecânica" que um dia existiu como espírito – ao qual junto o humorado “isquema” do exigente Chicão para tudo ficar em boa ordem. Mas ainda existe, como se vê, continua a existir por personagens circundantes. e circunvagantes como partes do “pedaço”. Vida longa Delcy!

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Humberto Guidi




Humberto Guidi (1900-1969). Não poderia faltar o seu Humberto, talvez dos mais antigos e sinceros amigos do meu Pai. Lembro, pois dele falava quando era menino. Aliás, lembro sempre dele sempre falar do Humberto e do Georgino (Paiva) como pessoas muito prezadas - isso por volta de 1945. Dizia haverem-lhe trazido um belo cavalo manga-larga, coisa que não cansava de lembrar associada a esses dois velhos amigos.


Enfim, conheci o Humberto depois, em pessoa (1958), quando aqui voltei e virei aluno na Escola Agrícola, onde ele era o almoxarife. Guardava e escriturava o patrimônio da EAFI como "carga" (significado que todos entendiam). Pois todos funcionários tinham "cargas" sob responsabilidade pessoal por patrimônio público especificado a zelar pela guarda, uso e manutenção. Sem dúvida, era coisa das mais bonitas e saudáveis na administração pública essa delegação de atribuições ao funcionário sob firmeza de responsabilidade, fosse de qual fosse a hierarquia - pelo governo da época.


Pois em relação também extensiva às próprias terras da EAFI, era o Humberto o virtual fazendeiro quem respondia pelo patrimônio público para o qual fora nomeado para zela e cuidar como se fosse seu - sob contas a prestar. Pois ninguém poderia mover palha ou qualquer coisa em qualquer lugar sem primeiro o Humberto colocar seu “chamegão” e licenciar uso. Claro, não adiantaria diretor nenhum dar "ordem". Pois para bom uso de bem material, ele respondia direto ao governo. Como respondiam direto ao governo qualquer funcionário sob "cargas". Tinham consciência da força estatutária para plenamente exercer atribuições.

Portanto, por mais autoritário que fosse qualquer diretor, não haveria subserviência. E o Humberto era a prova viva disso. E dou testemunho: a "linha dura" na EAFI (antiga EAVM), era mesmo com o Humberto Guidi. Só atendia se estivesse de acordo. E palavra do Humberto era final. Se tinha material, fazia. Não tinha ou nâo tem verba? Espera. Pronto. Tava resolvido. Resolver? Problema do Governo, porque dalí (Humberto) não passava.

Pois o seu Humberto Guidi era linha dura até com ele mesmo. Não freqüentava boteco.

Se não estava na escola, estava em casa de pijama.

Para azar nosso, meu e dos meus irmãos, ele morava vizinho em casa pela rua ao lado. Porém de fundo para o quintal - local onde depois foi construída a casa onde hoje mora a Dona Clara casada há mais de 70 anos com seu Pedro (Pereira) - também saudoso funcionário da EAVM. Certamente o azar nosso hoje seria compensado com a docura da Dona Clara se antigamente ela ali estivesse intercalada. Pois sem isso e, pelo quintal vazio, a braveza do Humberto irradiava furores pelos ares a vazar acima dos muros. Os quais eram diretamente captados por meu pai em frequência modulada, ondas curtas e médias. Talvez isso explique em casa coisas do tipo "quem bate pode não saber porque... mas... quem apanha o sabe"! Taí agora entendido: só podia ser "irradiação" do seu Humberto chegada através do muro direto, por "osmose" transversa! Por isso, quando a gente andava e molecava por aí em Inconfidentes, tudo tinha de andar na linha com o Humberto pois, tinha certeza, levaria cascudo de modo indireto.

Mas fora a molecagem que ele sempre soube espantar, o Humberto tinha mesmo razão em ser uma fera. Também pudera: com aquele monte de filhas (todas bonitas), dessas que a gente nunca se cansava de ver como todo molecote atrevido gostaria de assistir desfile de misses! Pois um dia a Edméia foi-me apresentada pela Dagmar (então namorada do meu irmão Gabriel); confesso: fiquei deslumbrado pela menina graciosa, a merecer o título dado pela irmã - e pelo deslumbre da veste branca encantada: ..."Olha aqui a Mis Brasil". Pois nunca mais vi a Edméia desde 1962. Mas fica aqui minha homenagem pela imagem sempre carinhosa que ficou). Lógico, o Humberto tinha mesmo de ser uma fera, para confirmar pelo universalismo as teses do Nelson Rodrigues: tanto no Meyer como em Jacarepagua ou Inconfidentes.

Mas além disso ainda haviam as outras irmãs que não ficavam atrás. E fazer serenata por ali a menos de 50 metros... era alto risco. Mas hoje, hoje quando encontro pelas ruas as antigas meninas, não há como deixar de ser: surgem como "cúmplices"existenciais de uma época vivida em comum, enquanto o tempo parecia infinito, a escorrer de vagar. E a cada encontro casual na cidade percebo o olhar antigo atrás de quem esconde o próprio Humberto Guidi num canto de sorriso. E tudo volta à velha Inconfidentes momentaneamente trazida ao contôrno - onde só falta voltar a poeira às ruas. Pois naquela época a gente levava cascudo sem saber porque. Se o Breno levava não sei. Mas sei sobre a gente lá em casa, depois de andar feito "plaboy" por aí... só porque eramos vizinhos, filhos de pai também nada manso a tudo captar - feito ondas de rádio amador!

Mas, pedagogias corretivas à parte, com o seu Humberto era assim. Tudo tinha que estar em ordem. Senão, era como ele mesmo dizia: o pau comia. Mas... havia atrás de tudo isso, também, outro Humberto. Era o Humberto, velho amigo do meu pai visto a dividir prosa alegre sobre manga-largas e assuntos de outras épocas - além de carinhoso pai quando falava de suas filhas e traia o ”xodó” pela caçula... tudo para depois realçar valor e fibra do Breno, meu colega, mesma turma na EAVM (1962).

Sinceramente... Se hoje o Humberto desse uma voltinha pelas terras da EAFI, como o zeloso "fazendeiro" a quem era afeto o patrimônio da Escola por delegação do governo (sua “carga" funcional), sinceramente acredito: torceria o pescoço de muita chefia atrevida que hoje derruba bosque de árvores do próprio patrimônio apenas para construir e mostrar estrepitoso barracão emprenhado de vaidosa futilidade à margem da utilidade. Jamais permitiria isso, tenho certeza. Iria conferir. Daria "parte" direta ao governo.

Pois Humberto Guidi é parte do romance universal, sem dúvida! Aliás, como são partes do romance universal o antigo prédio da Escola Agrícola - no livro do Raul Pompéia chamado "O Ateneu". É ler e conferir. Como também são partes do romance universal os quatro alto-falantes encimados na torre da igreja - virados para os quatro cantos da cidade, como Giovani Guareschi imaginaria aqui o "pequeno mundo" do seu Don Camilo às voltas com Peppone. E como também o cinema do seu Marcelo - praticamente foi contado pelo Giuseppe Tornatore no filme "Cine Paradiso". É ver e conferir. Pois toda donzela tem um pai que é uma fera.