Outra delicada lembrança não poderia faltar nesse Blog. Enéas Soares, idos de 1960. Compunha ele próprio a paisagem de Inconfidentes - sempre a subir no trajeto até a entrada da Escola à noitinha - após jantar na casa de sua mãe. Alguns dos mais antigos moradores, decerto acertavam seus relógios pela subida do Seu Enéas de hábitos e rotinas tão marcadas no tempo. Enfermeiro da antiga EAVM, era querido de todos, sempre amável e delicado.
Evidentemente não haveria pessoa mais dedicada em amor à humanidade e pureza de espírito juntado em cuidados aos "meninos" - assim ele chamava os alunos da Escola. Pois era ao Enéas a quem recorríamos ao primeiro espirro de gripe... ou pé torcido depois das peladas no páteo ou campo de futebol - embora quase sempre tudo terminasse tratado com uma "cibalena", o então santo remédio para tudo.
Mas a gente até abusava depois! Pois muitas vezes, fingiamos estar gripado ou coisa que ou valha apenas para ficar "internado" na enfermaria: para assim.... tirar uma folga nos trabalhos do campo. Mas aí Seu Enéias depois de chamar o Dr. Antônio castigava: tacava uma injeção onde ao final ficávamos a sentir "gosto de eucalipto" na boca...
Naquela época ainda não havia televisão. Tudo era transmitido pelas ondas curtas do rádio entre chiados e assobios sem fim. Localmente, era o radinho do Seu Enéas quem mais irradiava para o mundo circundante as "paradas de sucesso" musicais da moda - coisa que sempre ficávamos a ouvir ao passar por perto da janela do seu quarto (na direção do portão à entrada de enfermaria - foto). Assim, inesquecíveis ficaram algumas músicas de 1959 como "estúpido cupido", cantada por Celly Campelo logo ao início de sua carreira.
Aliás, ao quanto lembro, música várias vezes repetida durante o dia:"Oh! oh ! Cupido, vê se deixa em paz,
Meu coração que já não pode amar
Eu amei há muito tempo atrás,
Já cansei de tanto soluçar
Hei, hei, é o fim
Oh, oh cupido vá longe de mim"...Muito tempo depois, ao voltar a residir em Inconfidentes e atacado de insônia lá pelas 3 horas da madrugada resolvi da uma voltinha enquanto por outro lado a neblina recobria luzes nos postes. Fui sentar num banco da praça. Pois alí também voltei a encontrar o Enéas - mais um vulto assentado na solidão da noite. Também insone, contemplava o mundo cercado pelo silêncio ao redor. Já estava aposentado e morava sozinho: "eu... e Deus", assim respondeu com a mesma e afetuosa tranquilidade. Era o último habitante da casa da Dna Ita. Convidou-me a entrar. Mostrou o interior onde tudo parecia intocado entre frascos, retratos, toalhas, bibelôs e lantejoulas - desde o quarto da Terezinha: pois seus antigos moradores ainda pareciam presentes pelos móveis e arrumações. Aliás, na sala ainda chamava a atenção a antiga vitrola - móvel solenemente recoberto por um vaso florido sobre um pequeno manto bordado; tudo como se estivesse pronta para de novo reproduzir os mesmos "long-plays" em vinil. Ou os velhos "78" - onde decerto Lucho Gatica ainda cantaria o indefectível "Perfume de Gardênia" : "Perfume de gardenia,
Tiene tu boca, bellísimos destellos de luz en tu mirar;
Tu risa es una rima, de alegres notas,
Se mueven tus cabellos cual ondas en el mar.
Tu cuerpo es una copia de venus y citeres,
Que envidian las mujeres cuando te ven pasar;
Y llevas en el alma la virginal pureza,
Por eso es tu belleza de un místico candor.
Perfume de gardenia,
Tiene tu boca;
Perfume de gardenia,
Perfume del amor".-
(música composta por Raphael Hernandez)
Pois em sua homenagem reproduzo a letra dessa música junto com a última lembrança do Enéas - continuada enquanto voltava para casa, cercado desta vez pela neblina dos tempos.