Humberto Guidi (1900-1969). Não poderia faltar o seu Humberto, talvez dos mais antigos e sinceros amigos do meu Pai. Lembro, pois dele falava quando era menino. Aliás, lembro sempre dele sempre falar do Humberto e do Georgino (Paiva) como pessoas muito prezadas - isso por volta de 1945. Dizia haverem-lhe trazido um belo cavalo manga-larga, coisa que não cansava de lembrar associada a esses dois velhos amigos.
Enfim, conheci o Humberto depois, em pessoa (1958), quando aqui voltei e virei aluno na Escola Agrícola, onde ele era o almoxarife. Guardava e escriturava o patrimônio da EAFI como "carga" (significado que todos entendiam). Pois todos funcionários tinham "cargas" sob responsabilidade pessoal por patrimônio público especificado a zelar pela guarda, uso e manutenção. Sem dúvida, era coisa das mais bonitas e saudáveis na administração pública essa delegação de atribuições ao funcionário sob firmeza de responsabilidade, fosse de qual fosse a hierarquia - pelo governo da época.
Pois em relação também extensiva às próprias terras da EAFI, era o Humberto o virtual fazendeiro quem respondia pelo patrimônio público para o qual fora nomeado para zela e cuidar como se fosse seu - sob contas a prestar. Pois ninguém poderia mover palha ou qualquer coisa em qualquer lugar sem primeiro o Humberto colocar seu “chamegão” e licenciar uso. Claro, não adiantaria diretor nenhum dar "ordem". Pois para bom uso de bem material, ele respondia direto ao governo. Como respondiam direto ao governo qualquer funcionário sob "cargas". Tinham consciência da força estatutária para plenamente exercer atribuições.
Portanto, por mais autoritário que fosse qualquer diretor, não haveria subserviência. E o Humberto era a prova viva disso. E dou testemunho: a "linha dura" na EAFI (antiga EAVM), era mesmo com o Humberto Guidi. Só atendia se estivesse de acordo. E palavra do Humberto era final. Se tinha material, fazia. Não tinha ou nâo tem verba? Espera. Pronto. Tava resolvido. Resolver? Problema do Governo, porque dalí (Humberto) não passava.
Pois o seu Humberto Guidi era linha dura até com ele mesmo. Não freqüentava boteco.
Se não estava na escola, estava em casa de pijama.
Para azar nosso, meu e dos meus irmãos, ele morava vizinho em casa pela rua ao lado. Porém de fundo para o quintal - local onde depois foi construída a casa onde hoje mora a Dona Clara casada há mais de 70 anos com seu Pedro (Pereira) - também saudoso funcionário da EAVM. Certamente o azar nosso hoje seria compensado com a docura da Dona Clara se antigamente ela ali estivesse intercalada. Pois sem isso e, pelo quintal vazio, a braveza do Humberto irradiava furores pelos ares a vazar acima dos muros. Os quais eram diretamente captados por meu pai em frequência modulada, ondas curtas e médias. Talvez isso explique em casa coisas do tipo "quem bate pode não saber porque... mas... quem apanha o sabe"! Taí agora entendido: só podia ser "irradiação" do seu Humberto chegada através do muro direto, por "osmose" transversa! Por isso, quando a gente andava e molecava por aí em Inconfidentes, tudo tinha de andar na linha com o Humberto pois, tinha certeza, levaria cascudo de modo indireto.
Mas fora a molecagem que ele sempre soube espantar, o Humberto tinha mesmo razão em ser uma fera. Também pudera: com aquele monte de filhas (todas bonitas), dessas que a gente nunca se cansava de ver como todo molecote atrevido gostaria de assistir desfile de misses! Pois um dia a Edméia foi-me apresentada pela Dagmar (então namorada do meu irmão Gabriel); confesso: fiquei deslumbrado pela menina graciosa, a merecer o título dado pela irmã - e pelo deslumbre da veste branca encantada: ..."Olha aqui a Mis Brasil". Pois nunca mais vi a Edméia desde 1962. Mas fica aqui minha homenagem pela imagem sempre carinhosa que ficou). Lógico, o Humberto tinha mesmo de ser uma fera, para confirmar pelo universalismo as teses do Nelson Rodrigues: tanto no Meyer como em Jacarepagua ou Inconfidentes.
Mas além disso ainda haviam as outras irmãs que não ficavam atrás. E fazer serenata por ali a menos de 50 metros... era alto risco. Mas hoje, hoje quando encontro pelas ruas as antigas meninas, não há como deixar de ser: surgem como "cúmplices"existenciais de uma época vivida em comum, enquanto o tempo parecia infinito, a escorrer de vagar. E a cada encontro casual na cidade percebo o olhar antigo atrás de quem esconde o próprio Humberto Guidi num canto de sorriso. E tudo volta à velha Inconfidentes momentaneamente trazida ao contôrno - onde só falta voltar a poeira às ruas. Pois naquela época a gente levava cascudo sem saber porque. Se o Breno levava não sei. Mas sei sobre a gente lá em casa, depois de andar feito "plaboy" por aí... só porque eramos vizinhos, filhos de pai também nada manso a tudo captar - feito ondas de rádio amador!
Mas, pedagogias corretivas à parte, com o seu Humberto era assim. Tudo tinha que estar em ordem. Senão, era como ele mesmo dizia: o pau comia. Mas... havia atrás de tudo isso, também, outro Humberto. Era o Humberto, velho amigo do meu pai visto a dividir prosa alegre sobre manga-largas e assuntos de outras épocas - além de carinhoso pai quando falava de suas filhas e traia o ”xodó” pela caçula... tudo para depois realçar valor e fibra do Breno, meu colega, mesma turma na EAVM (1962).
Sinceramente... Se hoje o Humberto desse uma voltinha pelas terras da EAFI, como o zeloso "fazendeiro" a quem era afeto o patrimônio da Escola por delegação do governo (sua “carga" funcional), sinceramente acredito: torceria o pescoço de muita chefia atrevida que hoje derruba bosque de árvores do próprio patrimônio apenas para construir e mostrar estrepitoso barracão emprenhado de vaidosa futilidade à margem da utilidade. Jamais permitiria isso, tenho certeza. Iria conferir. Daria "parte" direta ao governo.
Pois Humberto Guidi é parte do romance universal, sem dúvida! Aliás, como são partes do romance universal o antigo prédio da Escola Agrícola - no livro do Raul Pompéia chamado "O Ateneu". É ler e conferir. Como também são partes do romance universal os quatro alto-falantes encimados na torre da igreja - virados para os quatro cantos da cidade, como Giovani Guareschi imaginaria aqui o "pequeno mundo" do seu Don Camilo às voltas com Peppone. E como também o cinema do seu Marcelo - praticamente foi contado pelo Giuseppe Tornatore no filme "Cine Paradiso". É ver e conferir. Pois toda donzela tem um pai que é uma fera.
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